quinta-feira, junho 30, 2005

O Amigo que a guerra me deu

O amigo que a guerra me deu.


O António, era um homem simples e bondoso de quem eu gostava muito.
Morrera havia menos de uma hora..
João veio dar-me a notícia. Fiquei petrificado. Sem ar para respirar.
Ironizando a publicidade de qualquer champô rasca de supermercado, adoecera com dois em um: dois tumores malignos, um na próstata e o outro no cólon e não se chegando a perceber se eram primários ou um secundário ao outro, tão contemporaneamente se manifestaram, ingenuamente nenhum de nós tinha perdida a esperança, que afinal agora se gorava
Vítima de uma divindade injusta!?
Como que por sarcasmo, e o povo é que o costuma dizer, são sempre os melhores a pagar mais caro. Quase como uma regra!
Cada vez mais se dissipa e distancia a pouca fé que de que só recordo um breve assomo pelo temor de perder a minha mãe na minha já longínqua infância.
Hoje, não quero nada com ela. Nem um apetite ou necessidade vagos. Nem que ela, pela ameaça de infernos inventados, de braseiros de sofrimento eterno que carregava consigo à sua rejeição, de uma forma perversa, insidiosamente ciciada por homens de batina negra a feder a cera e a incenso, outra vez sub-repticiamente me espreitasse como a querer agarrar-me quando eu ainda criança quase a sentia próxima, fazendo-me sentir o seu hálito quente e misterioso.
Conhecemo-nos na Guiné, durante a guerra colonial: eu jovem alferes médico, ele furriel enfermeiro da minha companhia.
Embora as normas do regulamento militar não sancionassem o convívio entre sargentos e oficiais, foi a guerra que no seu desenrolar da miséria e da dor de feridos e mortos, condicionou a grande amizade que a partir daí se estabeleceu entre nós.
Depois de desmobilizados, o regresso à grande cidade e o inexorável afastamento de quem regressa às suas profissões anteriores. Mas, ironia do destino, que tantas vezes traça caminhos que a razão não compreende, inacreditavelmente, para além de curtos telefonemas ou combinações que nunca acabaram por se concretizar, estivemos anos sem nos vermos, até ao dia em que a minha filha Helena me participou que tencionava casar e para maior espanto meu, com um filho dele, o João, um rapaz bem caçado, cheio de manias ecológicas, que só conhecia de pequenino de uma desbotada fotografia que ele sempre me mostrava de lágrima ao canto do olho, nos momentos mais desoladores da nossa permanência em África.
António tornara-se-ia assim mais uma outra peça da família
Filhos casados, amizade refrescada. Passámos então a encontrarmo-nos com alguma regularidade.
Mas o meu amigo morreu!
Tinham passado alguns anos já sobre aquela tarde em que sentados num banco tosco improvisado sob a copa generosa de um vetusto pinheiro manso, assávamos umas belas sardinhas naquele lugar a que chamavam o Carreiro do Sol, onde ele tinha construído com a ajuda do filho uma agradável casinha de um só piso e eu reparara que tinha dores claudicantes quando fazia o mais pequeno esforço de caminhar à procura de gravetos para alimentar as brasas. Muito embora eu fosse um médico especializado noutra disciplina bem diferente da medicina interna e por esse facto teoricamente um tanto afastado da frescura desses conhecimentos, lembrava-me contudo daquela patologia que atingia grandes fumadores como era o caso do meu amigo. Avisei-o e ele pouco depois foi operado, parou com os cigarros e ficou bem melhor.
E relembro-o já com saudade..
Sempre que nos encontrávamos em casa dos nossos filhos, ficava eu quase logo um pouco tocado pelo bom vinho que ele de pronto me oferecia, caído no estômago vazio, sempre em fins de manhã, em que antes de chegar àquela vilória onde vivem ainda felizes como príncipes encantados, tudo o que habitualmente comia – por costume chego sempre atrasado -, se reduzia a um café e um croquete ou mais modernamente uma chamuça, mastigados à pressa na pastelaria da praceta em frente à casa em que vivo; salgados de qualidade mais do que duvidosa, pois normalmente os produtos dessas tascas tipicamente portugas, de chão pejado restos de guardanapos usados de papel, beatas e outras nojeiras, que a clientela se encarrega de depositar exemplarmente fora dos locais apropriados – o cidadão nacional gosta de cuspir para o chão e aí largar toda a espécie de porcarias -, que se espalham por toda a cidade, são fabricados em lugares desconhecidos e seguramente pouco recomendáveis do ponto de vista higiénico-dietético.
A minha condição de médico, levava-me então pelo efeito secundário de um ou outro copo a mais e dos eflúvios agradáveis do espírito da bebida, a tecer como um verdadeiro mestre, considerações magistrais sobre saúde em todos os domínios, numa idiota verborreia descontrolada, chata, inoportuna e estúpida dando conselhos à esquerda e à direita, igualmente asnos – nunca olhava para mim próprio, porque se o fizesse tinha de me devolver esses conselhos tão cretinos.
Nessas muitas reuniões familiares que aconteciam naquela agradável moradia de dois pisos, dotada de uma zona onde se fazem admiráveis churrascos de peixe fresquíssimo e mais raramente de carnes carregadas do tão famoso colesterol - veneno tão criticado pela cultura americanizada, obesa, devoradora de pizzas, hamburguers e outros tipos de fast food -, por altura dos aniversários da Helena, do João, dos nossos netos, o Pedro e a Madalena, ou por outro pretexto qualquer, ele estava sempre presente e após um curto período, que mediava entre o petiscar de umas quantas iguarias que a sua mulher, de origem goesa, cozinhava, o servir das engenhosas saladas que o João inventava com a maior mestria, até ao início das refeições, íamos beberricando vinhos do Bombarral, que ele nos trazia como se fossem tesouros; os melhores que qualquer boa cave possuiria.
Sempre foi ali, nas traseiras daquela bela mansão de aspecto cubóide, pintada de branco de alvaíado, que eu e o meu amigo António, à volta da grelha e do braseiro feito cinza, como ensinam os pescadores, muitas e muitas vezes assámos e devorámos sobre generosas fatias de pão da aldeia, as primeiras sardinhas de Junho, de preferência de tamanho médio e pele bem salgada, que saíam do lume a queimar-nos as mãos - antes de serem servidas aos outros, que sentados à mesa, como amadores, as esperavam já frias e sem gosto, regando-as criminosamente com azeite -, conversámos longamente e sem nos darmos conta, robustecemos uma amizade para toda a vida..
Só que o meu amigo desde há dois anos, de novo adoecera gravemente e sem que nada pudesse ser feito – alguém deve ter rezado também à espera de um milagre que nunca acontece -, morreu ontem, com um breve suspiro e uma lágrima a escorrer-lhe pela face, olhando num entreabrir breve das pálpebras o seu filho que angustiado lhe segurava carinhosamente a mão.
Era dia vinte e cinco de Abril e enquanto corria velozmente a estrada até à sua aldeia natal, onde seria sepultado, para lhe dizer adeus, o meu pensamento estava só com eles.
Todos.
O António em especial.
Estive ali, diante dele, do António, em silêncio, revendo o seu sorriso amigo e generoso, a sua palavra sempre fraterna.
E ele sem me poder ver.
Tanta gente dentro daquela capela a orar piedosamente, a conseguir enternecer-me pela sua ingenuidade e ele ali condenado, sem saída, com a mão negra das morte a vogar sobre as nossas cabeças, a sorrir num esgar do poder de tudo arrastar à sua passagem no momento em que resolve aparecer, desafiando a omnipotência desse ou de qualquer outro Deus.
A gente da aldeia veio em peso prestar-lhe uma derradeira homenagem.
Àquele homem estimado por todos.
Não havia dúvidas!
No cemitério eu olhava comovido, o João e a Helena que ternamente, lhe dava o amparo do seu braço amigo.
João. Aquele homem já nos seus quarenta anos, feito criança desprotegida. Via-o como se fosse meu filho.
Não consegui dominar o enternecimento. Uma lágrima e depois outra e mais outras escaparam-me, rolaram-me pela face.
Custou-me tanto vê-lo sofrer! E ele sem o demonstrar.
Com dignidade.
Forte.
Heróico!
Aparentemente!
Despedi-me dele com um beijo. Pela primeira vez um beijo. Como quem beija um filho.
Acabo de chegar a casa, completamente destroçado.
Sentado, absorto, infeliz chorei. Depois bebi por ele, pelos dois, pela nossa amizade.. Bebi muito. Estava e estou profundamente infeliz pelo seu desaparecimento e pela dor que se lhe junta.
Tinha ainda no ouvido, o martelar doloroso do som cavo dos torrões a percutir o tampo do caixão envernizado, e a encobrirem aquela cruzinha de latão amarelada-ouro pregada ao centro da cobertura.
Não consegui resistir.
Pensei naquele rapaz.
Peguei no telefone, comovido, com a voz embargada. Esperei.
Do lado de lá da linha uma voz quase mecânica ordenou: - deixe a sua mensagem.
Sentado à secretária ganhei coragem e escrevi-lhe umas simples linhas:
João:
Sinto um inextinguível desgosto pela morte do teu pai e avalio quanto sofres neste momento. Acredita que estou contigo. Nem sequer tinha a consciência de que era tão vosso amigo. De todos vós!
Mas sabes, João, homens bons, como o teu pai, não morrem.
Adormecem.
Falta-me pouco, meu amigo, o meu calendário já vai adiantado, mas estou certo de que enquanto viver, nunca o esquecerei. Não são palavras ocas.
Nunca!
Lembra-te também de mim quando eu partir.
Um beijo.
Jorge

Lisboa, 2005/06/30




2 comentários:

Carlos de Matos disse...

...é a vida!
...CUSTA SEMPRE!

abraço fraterno!

Anónimo disse...

Obrigada por partilhar connosco a sua escrita. Parafraseando António Lobo Antunes, subscrevendo inteiramente,"(...) pela incompreensível finitude da vida: não fomos feitos para a morte."

Beijos para o meu mestre de pintura!