sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Paciência

Há não muito tempo, numa manhã radiosa de fim de Verão, esperava eu, no largo fronteiriço à consulta externa de um decrépito hospital, bem à portuguesa, sentado num banco corrido de madeira, assento e costas de ripas duras, verniz desgastado pelo uso imoderado de almas sofredoras e pacientes, um banco igual a outros que por aí raramente se encontram nos maltratados jardins públicos desta nossa Lisboa.

A sombra acariciante de uma velha acácia e uma brisa suave adoçava aquela espera angustiante.

À minha volta, um murmúrio dolente da vozearia monocórdica da poalha de gente , entrando e saindo, passando,..., eu desatento, totalmente.
Não era pois um jardim, aquele lugar onde ansiosamente esperava eu a palavra amiga de alguém que me diria:

...desta vez a tua próstata ainda te não vai matar!

Ao meu lado, pouco depois, sentou-se um homem, que vim a saber ter a minha idade, quase cadáver, escanzelado, macilento, envelhecido, aparentado mais ser meu pai do que meu contenporâneo, que, cerimoniosamente me foi pedindo cigarro após cigarro, e, como se me conhecesse desde sempre, me foi falando da sua vida, dos seus desgostos, do seu abandono maternal, da sua megera madrasta Madrilena, que seu pai, um traste embarcadiço, conquistara, mulher que lhe fizera uma infância e adolescência tenebrosas.

Anquilosado pelas artroses do tempo e de uma vida de trabalho duro, em condutas de gáz, toráx tuneliforme da fumaça de anos e anos, respiração curta e ruidosa, falou, falou, falou sempre, muito, torrencialmente, palavras como um rio tumultuoso,só interrompendo o sua imparável verborreia, para, em tom severo e agastado, por várias vezes, recusar a garrafa de água, que uma mulher, a sua dedicada companheira, olhar esgazeado de ansiedade, lhe oferecia obsessivamente, olhos humedecidos do adivinhado terror de o perder:
-Tens de beber, homem de Deus, senão o doutor não te faz o exame e depois sabes, é muito pior...!

Um tanto absorto, mas enternecido até, tentei, tentei escutá-lo, o mais carinhosamente que a minha ansiedade tornou possível e quedei-me, boquiaberto, quando, já cansados de esperar, lhe ouvi o que jamais supusera poder ouvir num suspiro profundo:
Olhe, meu caro Senhor, às vezes, o que é preciso é ter muita paciência para a paciência.

6 comentários:

LUA DE LOBOS disse...

como eu entendi... e podes crer que é preciso mesmo::))
xi
maria de são pedro

Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) disse...

Fernando. Qué bello y sentido texto. Me asombra esa capacidad tuya para ponerte en otras pieles.

Tener paciencia para soportar la paciencia. A veces no soportamos tanta paciencia. Tanta........

Un abrazo.

Choninha disse...

Quando estamos disponiveis para ouvir os outros por vezes surpreendem-nos as suas palavras, simples mas verdadeiras. Eu diria que nos falta a paciência para ter paciência para a paciência... Já tinha saudades de um post "à la Jorge"...

LUA DE LOBOS disse...

o meu email já está no Profile do Lua de Lobos e obrigada pelas tuas palavras
xi
maria de são pedro
P.S. No google encontras informação sobre os livros mas escreve-me:)

Antonio stein disse...

Não está ao alcance de todos...

Ser um excelente paciente,
é saber Ouvir e melhor Contar!

Um abraço

Maria Carvalho disse...

É verdade. Beijos.