A mudança ( Ou nem por isso...)
É sempre com eles que desde há anos eu e a minha mulher passamos as duas primeiras semanas de Setembro e todos sentimos que, desde o início em que para aqui vínhamos, até há duas épocas atrás, tudo era diferente, bem melhor. Era no bar empinado sobre a colina sobranceira a essa pequena praia, que no dia da chegada nos encontrávamos, para definir o programa das férias, invariavelmente sempre o mesmo: jantaradas, copos, decidir quem iria procurar na recepção do aldeamento onde todos ainda hoje se instalam, à excepção de nós – alugamos sempre um apartamento na vila -, notícias da chegada do Peter e da Rose, para combinar com eles a hora a que se deveriam juntar na praia, no dia seguinte, com toda a companhia.
Eles têm um time-share durante as duas primeiras semanas de Setembro e a única variável que os faz desencontrar de nós, ocorre como consequência da hora mais ou menos irregular da chegada do charter em que costumam viajar, desde Manchester, que não sendo sempre pertença da mesma companhia aérea, faz com que aconteça essa mutabilidade de horários.
Nessa praia que desenha uma desafogada e agradável enseada em concha e onde antes nos apetecia muito estar, havia muita pouca gente. Eram escassos grupos de veraneantes reduzidos a umas poucas dezenas de pessoas, a rondar a nossa idade, que se estendiam relaxadamente ao sol, sobre os seus toalhões coloridos, horas a fio, sem chatearem ninguém, deixando transparecer, que o que mais ansiavam, descontados os dias da chegada e da partida, era passarem essas dez ou doze tardes de paragem no trabalho duro de todo um ano, mais ou menos tranquilas, entre conversas que mesmo sem querermos, era inevitável ouvirmos e que, de uma ou de outra forma, todos os anos inexoravelmente se repetiam: reflexões sobre os problemas políticos do país, sobre o tempo agradável que fazia, comentando a desgraça dos que tinham gozado férias em Agosto, que tinha sido um verdadeiro horror, com muita gente, muito vento, água fria, enormes bichas para as padarias, para os restaurantes, para os supermercados, sobre a carreira escolar dos filhos mais jovens, os casamentos felizes ou destroçados dos mais velhos, os projectos de mudanças de apartamentos para áreas residenciais mais agradáveis da capital, e outras banalidades. Sempre a mesma música.
Para o nosso restrito grupinho, durante os primeiros dois ou três dias do inicio e depois dos arrepios dos primeiros banhos, das sessões de besuntadelas com protectores solares de duvidoso poder filtrante dos ultravioletas – eu só depois de há dois anos ter sido operado a um tumor da pele, é que finalmente me rendi aos ditos protectores solares, mas só de índice seis, o que não me deve servir rigorosamente de nada -, tudo acabava, já no declínio do dia, no Bar do Antunes, por ir parar às descrições acaloradas das famosas viagens que o João e a Adelaide tinham feito durante o ano, aproveitando, a maioria das vezes, reuniões profissionais, por regra o pretexto fundamental dessas digressões, incluindo sempre a reprise das outra excursões feitas em épocas anteriores e que ele volta a descrever como se delas tivesse ontem acabado de chegar, sempre comigo a fugir do olhar crítico da minha mulher, que por anos que viva nunca deixará de me acusar de sempre ter sido um grande toleirão por nunca ter sabido ou nunca ter querido aproveitar as viagens de borla que a sua condição de assistente de bordo de uma companhia aérea nos propiciava.
Desde há dois anos, porém, tornou-se impossível continuar a frequentar aquele lugar que durante tantos anos parecera ser só nosso, como nosso é o pequeno e amável recanto privado da nossa casa ou jardim, porque começámos a ser vitimas da invasão desenfreada de ruidosas multidões provenientes de todos os cantos do País.
E assim, pesados os inconvenientes de uma maior distância, de uma poeirada infernal por um caminho de cabras, seco, árido, esburacado e pedregoso nalguns lugares, a estropiar a suspensão dos nossos carros de gama média e sobretudo a falta do bar do Antunes, onde o João costumava diariamente devorar com lascívia mal contida o seu indispensável gelado de rum com passas, resolvemos, finalmente, mudar-nos para um magnífico areal, a uns poucos quilómetros dali, onde o mar é batido, sem ser perigoso e, onde, pela sua grande extensão quase se não dá pela presença de fastidiosas hordas de invasores novos-ricos de meninos insolentes e meninas queques parvalhonas, ainda com restos do buço adolescente, a cheirarem a capoeira no fim de tarde de escola e outros parceiros já com idade para terem juízo e começarem a pensar em tratar as peles de galinha, a celulite e as artroses incipientes, que ensurdecem o ambiente e poluem selvaticamente as límpidas águas do oceano com os dejectos das mais diversas máquinas-merdices movidas a gasolina, fedendo e envenenando o ar, que deveria ser, no mínimo, puro, entre as quais ressaltam à cabeça as famosas motos de água possuidoras das mais virulentas potências, medidas em cavalos, unidades essas, pelas quais deveriam ser conhecidos os useiros dessas máquinas de tortura e desestabilização de pacatos cidadãos como nós, que outra coisa não pedem senão: um pouco de tranquilidade bem merecida ao fim de um ano de labuta, sem relógio, sem rádio, nem estações deseducadoras de televisão a impedirem o diálogo e a tranquilidade das famílias, com o cotejo de todo o lixo que vomitam a martelar-nos os ouvidos, especialmente à hora das refeições, com sondagens de níveis de audiência, novelas da vida real, desgraças sociais ou noticiários, que espremidos, jorram sangue, e muita paciência para suportar a verborreia desintérica que uns quantos politiqueiros vão fazendo a troco de apanharem mais uns votos aos pategos que ainda caiem na asneira de acreditarem nas promessas de mundos e fundos, que sabem que nunca poderão cumprir, sujeitos esses, tantas vezes inexperientes, como amadores, alguns até honestos – sempre lhes vou dando o beneficio da dúvida -, vindos de não se sabe de onde, que nunca ninguém viu fazer nada com jeito, arrogando-se donos da honra e da verdade universal e que dirigem a nação como se fosse uma pequena horta de exploração familiar.
E assim, mudados de poiso, tudo voltou à rotina anterior: o encontro de todos, notícias sobre a chegada dos nossos companheiros ingleses, combinações e mais combinações, marcação da data da sardinhada de despedida de férias..., etc.. tudo como dantes em Abrantes... e uma vez estabelecida a estratégia para aqueles dias de liberdade, a vida continua cumprindo o calendário estabelecido.
O João, logo no dia seguinte ao da chegada cumpre o ritual quase olímpico de desatar a imprecar que detesta praia e que estar de férias é igual a ir meter-se no meio dos pinheiros da sua terra natal e não aquela enorme bambuchata de ir logo pela manhã ao supermercado fazer as compras necessárias para as crónicas sanduíches, água potável em garrafão plástico de cinco litros, de preferência o que está em preço de promoção, devidamente rotulado a garantir a sua frescura e pureza bacteriológica e mineral e, as sempre indispensáveis uvas brancas, importadas de Espanha, porque as portuguesas, nem sempre têm as características exigidas pela união europeia e sejam até bem mais caras, muito embora esse facto lhe revolte as entranhas – ele defende a agricultura nacional com unhas e dentes.
Enquanto circula nos corredores gélidos do supermercado – a gerência não deve fazer a mais pequena ideia de como se regulam os aparelhos de condicionamento do ar -,menos pindérico da área turística por onde vegetamos e onde fazemos as compras parar o dia a dia, porque os restantes além de não terem nada que se aproveite para além de cerveja ranhosa, já quase fora de prazo de validade, vendida em promoção, sobretudo aos bifes, vai reclamando em surdina contra o frio intenso que se faz sentir lá dentro e contra as hordas de estrangeiros, aloirados, ruivos como cenouras, ou vermelhos como tomates, tatuados com uma pompa invulgar de indescritível piroseira - tatuagens que em sua opinião são nem mais nem menos do que tentativas degeneradas de auto promoção, ignorância e rasquice -, e que conseguem aferrolhar uns patacos durante o ano, com o sacrifício de umas quantas refeições próprias para gente normal, para virem para ali chatear pelo preço da uva mijona, dando-se ares de grandes senhores, quando por certo, nas suas terras, não passam de uns parolos que só comem quente uma ou duas vezes por semana e o resto do pastel gastam-no a enfrascar-se com uma cerveja nojenta e quente, encafuados em pubs a cheirar a mal lavados, decorados a papel de parede vermelho às flores berrantes, como casas de putas americanas dos anos trinta.
Confesso a saudade que tenho daquele tempo em que antes de mudarmos de praia, o nosso grupo de aficcionados, se sentava confortavelmente ao fim da tarde na esplanada do bar do Antunes e beberricando café expresso de qualidade duvidosa, ficava ali a ouvir rosnar do João, com a ironia benevolente de quem sabe muito bem que as criticas que ele fazia, continua e continuará sempre a fazer, não seriam e seguramente não são bem assim, porque ele, lá no fundo, também não seria capaz de passar sem aquelas duas semanas - sem a nossa imprescindível presença -, a que persiste não chamar férias de Verão, apelidando-as, outrossim, com graça, de férias de açorda, uma vez que tudo o que o bando come ao longo da tardes nos intervalos dos prolongados banhos, se resume às indispensáveis uvas brancas andaluzas, sanduíches, as mais variadas – eu costumo usar o atum esmagado com maionese e uma folheca de alface -, acompanhadas de água fresca dos termos de campismo azuis, de maior ou menor capacidade, também usados pelos fanáticos do campismo, vendidos em promoção nas grandes superfícies comerciais locais; outro lugar de visita preferencial daqueles portugas, que não tendo um chavo para gozarem férias em apartamentos, se vão ficando pela nojeira de hiper-apinhados parques de campismo, garrafas de gás dormindo perigosamente lado a lado, e que por ali passeiam as suas obesidades balofas de empanturramentos invernosos em feijoadas e cozidos à portuguesa, embrulhadas em fatos de treino garridos, e que para além de mirarem as montras das caríssimas lojas desses centros de estúpido consumo, mais não fazem do que se encocacolar, se embatatofritar, se empanzinar com hambúrgueres, pizas ou chamuças e mais modernamente, folhados gordurosos pré-cozidos, segundo me constou – é bem português ouvir contar e depois voltar a contar...quem conta um conto aumenta um ponto... -, também oriundos da nossa estimada e vizinha Espanha. E assim, entre outras perdas, o que em boa verdade lamentamos ao ter deixado de frequentar a nossa primitiva praia, foi a perda da magnífica esplanada do Antunes e a forçada nova mudança decidida por consenso geral para esse outro lugar, bem mais longe, pensando que por esse facto, seria mais deserta de cromos, por ser de mais difícil acesso à populaça e distante dos ruidosos invasores hidro-motoqueiros, dispondo de um bar ranhoso e caro, propriedade de uma tia pedante e magricela, de aspecto bem nascido, face anormalmente esticada por uma cirurgia plástica mal conseguida, pensando nós, ingenuamente, que por esse facto teríamos descoberto um digno sucedâneo do bar do Antunes. Puro engano, pelo menos desde o ano passado, altura a partir da qual, tudo piorou ainda mais, pois para além de um café de saco, amargo, frio e caríssimo, parece que todo o mundo resolveu emigrar para a costa sul, particularmente para esta nossa quase recém descoberta praia, como se algum miasma altamente venenoso os perseguisse - felizmente mais massivamente durante o mês de Agosto -, ou como se fugissem de uma hedionda guerra.
Se tivesse a mínima suspeita de que no próximo Setembro se repetiria a invasão do ano que passou, nunca mais me passaria pela cabeça ali voltar, por muito que me custasse ver-me privado da companhia daqueles meus amigos!
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